Uma  história de resgate cultural que começou há mais de uma década e atraiu a  atenção de moradores de Latronico para o artesanato alagoano.
Quando  as arquitetas Josemary Ferrare e Adriana Guimarães iniciaram o projeto de  resgate do Bico Singeleza tiveram como principal preocupação a preservação de  um patrimônio cultural que estava se perdendo. Em 1994, Josemary ouviu dona  Marinita, durante uma entrevista. A artesã estava com mais de 80 anos, morava  sozinha, não tinha filhas e não tinha repassado o conhecimento do ponto para  ninguém. "Naquele dia, dona Marinita disse que aquele saber ia se perder  com ela, porque ninguém tinha se interessado em aprender. Isso ecoou no meu  coração. Eu pensei que não podíamos deixar aquela arte se extinguir",  contou Josemary.
 
A partir dessa entrevista, Josemary procurou parcerias para resgatar o bico  Singeleza. Foram muitas etapas desde então. A primeira missão foi tentar  levantar dados sobre o ponto tão singular. "O Bico Singeleza chegou a ser  bastante comercializado em Maceió e Marechal Deodoro, sendo largamente  apreciado para compor peças de enxoval como lençóis, toalhas de banho, lenços  de bolso, e também peças de vestuário íntimo feminino, sobretudo anáguas e  saietas, quando estas ainda eram de confecção doméstica, e não  industrializada", relataram as arquitetas no primeiro projeto apresentado  para divulgação do trabalho.
 
Segundo Josemary, a industrialização contribuiu bastante para o desuso do bico  Singeleza, que foi caindo no esquecimento. "Das mulheres deodorenses que  confeccionavam o Bico e a Renda Singeleza, somente duas delas, Filomena Nunes  da Silva, a Dona Filó, e a filha, Maria do Carmo Nunes da Silva (a Marinita)  continuaram produzindo para atender encomendas cada vez mais raras. Dona Filó  morreu na década de 1980, e dona Marinita tornou-se a única guardiã conhecida  desse ponto", contou Josemary.
 
Em 1996, Josemary Ferrare defendeu sua dissertação do Mestrado em Arquitetura -  Preservação e Restauro, na Universidade Federal da Bahia, com o título: A  Preservação do Patrimônio Histórico: um (Re)pensar a partir da experiência da  Cidade de Marechal Deodoro. O trabalho foi ilustrado com uma foto de D. Marinita  sentada na soleira da porta de sua casa, já que um dos enfoques da pesquisa era  a ameaça da perda do Saber-Fazer do Bico Singeleza e também do Labirinto.  "Começamos então a chamar a atenção dos pesquisadores para a necessidade  de preservar esse conhecimento", destacou a arquiteta.
 
Registros e oficinas
 
Durante esses anos dedicados ao resgate do bico Singeleza, Josemary Ferrare e  Adriana Guimarães participaram de vários projetos e atividades. Entre essas  ações, destaca-se a inclusão temporária no Programa de Salvaguarda do  Patrimônio Imaterial do Iphan, em março de 2004. No final deste mesmo ano, dona  Marinita realizou uma oficina para oito artesãs locais, ensinando a fazer o  bico Singeleza. Ainda em dezembro de 2004, aconteceu a exposição “A Singeleza  do Bico Singeleza”, no Centro Cultural Santa Maria Madalena da Lagoa do Sul, em  Marechal Deodoro com subsídio financeiro do Instituto do Patrimônio  Histórico e Arquitetônico Nacional - Iphan.
 
O trabalho continuou com a produção do filme “A Singeleza do Singeleza”, ainda  em 2004, realizado com apoio financeiro do Grupo Empresarial Carlos Lira, que  foi veiculado em aulas ministradas pelas autoras do projeto e em encontros  científicos. Com a repercussão do trabalho, a foto de D. Marinita foi  escolhida para tema do Cartão de Natal e Feliz Ano Novo da Secretaria Estadual  de Cultura de Alagoas. "Dona Marinita foi ficando mais conhecida e o bico  Singeleza começou a ser abordado em reportagens da imprensa local",  destacou Josemary.
 
"Uma entrevista com dona Marinita e as autoras do projeto publicada no  Caderno B do Jornal Gazeta de Alagoas repercutiu bastante, chegando a despertar  o contato de uma Companhia de Balé, que foi procurar a artesã Dona Marinita em  Marechal Deodoro e inspirou-se na agilidade de suas mãos ao tecer o Bico como  temática do espetáculo de intitulado: Mãos – a voz do coração. O espetáculo foi  apresentado no Teatro Deodoro em Maceió", relataram as autoras do projeto.
O Bico Singeleza foi catalogado como acervo de amostra do Museu de Antropologia  e Folclore da Universidade Federal de Alagoas, Museu Théo Brandão, e está em  exposição na sala do Saber Alagoano, desde janeiro de 2006. "Foram muitas  homenagens. Dona Marinita chegou a ser contemplada com o Prêmio Gustavo Leite  2006, destinado a artesãos Mestres de Saber, em cerimônia que ocorreu em  palanque montado ao ar livre na av. Duque de Caxias em Maceió, promovida pela  Fundação Municipal de Cultura de Maceió", destacaram as arquitetas.
 
A guardiã se vai, mas o  trabalho continua
 
Dona Marinita faleceu em 2006. Felizmente, graças ao esforço das arquitetas, o  bico Singeleza não se perdeu. Pelo menos seis artesãs aprenderam nas oficinas a  fazer o ponto. O trabalho das arquitetas continuou. Em 2007, o Projeto  (Re)bordando o Bico Singeleza foi contemplado pelo Prêmio Culturas Populares  2007 – Mestre Duda – 100 anos de Frevo conferido pelo Ministério da Cultura a  projetos de incentivo à preservação cultura no Brasil.
 
Os recursos recebidos pelas autoras do projeto foram destinados a edições de  oficinas de repasse do Saber do Bico, realizadas no Museu Theo Brandão, em  Maceió, e no ponto de Cultura, em Marechal Deodoro. Em 2008, o Projeto foi  contemplado com o Prêmio Zumbi dos Palmares conferido pelas organizações TV  Pajuçara e Instituto Zumbi dos Palmares.
 
Em dezembro de 2008, o Iphan aprovou recursos para a montagem de uma equipe  pesquisadora para fazer um rastreamento do Saber-Fazer o Bico Singeleza em  maior profundidade de investigação sócio-antropológica no Estado de Alagoas.  Atendendo ao Edital, a Fundação de Desenvolvimento e Pesquisa (Fundepes) formou  uma equipe com as arquitetas Josemary Ferrare (Ufal) e Adriana Guimarães  (Secult), a antropóloga Rachel Rocha (Ufal) e a historiadora Arrisete  Lemos(Ufal) para elaborarem um dossiê escrito e áudio visual para a candidatura  final do Bico e Renda Singeleza como Patrimônio Cultural do Brasil. O processo  ainda está em curso.
 
E a Itália nos  encontra...
 
Como a Itália entrou no caminho da Singeleza alagoana é uma história curiosa.  Enquanto produziam vários tipos de materiais para o reconhecimento do  artesanato alagoano, a equipe responsável pelo dossiê encaminhado ao Iphan  descobriram artesãs do sertão alagoano, em Água Branca, que também sabiam fazer  o ponto. Mas não conseguiram rastrear como a Singeleza surgiu. De onde herdamos  esse conhecimento?
 
Coincidentemente, uma pequena cidade italiana, chamada Latronico, estava  fazendo o mesmo levantamento cultural para o resgate do "Puntino ad  Ago", um ponto muito parecido com a singeleza alagoana. A italiana Felicetta  Gesualdi, responsável pela pesquisa do Puntino ad Ago e presidenta deda  Fundação Cultural IL Tassello, estava realizando levantamentos na internet  quando encontrou artigos ilustrados publicados pelas arquitetas alagoanas sobre  o Singeleza. Felicetta passou um ano procurando o contato das  pesquisadoras da Singeleza, até encontrar. "Imagine a nossa surpresa ao  ser procurada por uma italiana que queria comparar o artesanato de Latronico  com a singeleza de Alagoas", contou Josemary.
 
Josemary Ferrare e Adriana Guimarães estiveram em Latronico em julho deste ano.  No dia 18, foi realizado um encontro na praça da cidade italiana onde as  arquitetas, respectivamente professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo  da Ufal e mestranda do Programa da Faculdade de Arquitetura foram homenageadas  pelo Projeto de Resgate com um prêmio cultural: o prêmio Il Tasselo 2012.
 
Na Itália, a cidade de Latronico, na região da Basilicata, reivindica que o  Puntino ad Ago (Ponto de Agulha), uma renda tradicional ainda muito  confeccionada para usos diversos seja reconhecida pela Unesco como Patrimônio  da Humanidade. Com a similaridade entre os dois artesanatos, a Fundação  Cultural italiana em contato com a Universidade de Potenza reafirmaram  interesse em manter o contato com o Estado de Alagoas e, particularmente com a  Universidade Federal de Alagoas para pesquisar se existe uma origem comum ao  Puntino ad Ago de Latronico e a Singeleza de Alagoas.
Fonte: UFAL - Universidade Federal de Alagoas - 
Lenilda Luna – jornalista - 10/08/2012